Déficit habitacional no Brasil: Uma questão de gênero

Déficit Habitacional

 O último levantamento sobre déficit habitacional divulgado pela Fundação João Pinheiro (FJP), relativo ao período entre 2016 a 2019, mostra que neste último ano analisado o país apresentou um déficit habitacional de mais de 5 milhões de domicílios. Deste volume, aproximadamente 60% são chefiados por mulheres, configurando 3,5 milhões do contingente. Na região Sudeste, a situação é ainda pior, com a taxa feminina de 62,3% – quase o dobro da masculina, que ficou em 37,7%.

O estudo mostrou, além disso, que o índice de mulheres vivendo em situação de precariedade habitacional aumentou em 9% no período estudado e, no caso dos homens, diminuiu 1,15%. 

Conforme o estudo da FJP, o problema do déficit habitacional no Brasil é também uma questão de gênero e raça, pois afeta direta e principalmente mulheres negras e periféricas. E a maioria feminina no déficit habitacional deve ser entendida a partir de avaliações sociais e urbanísticas. Essas análises levam em conta dados como: mudanças populacionais e geográficas, formatos de construções familiares e a violência de gênero. Segundo dados do IBGE (2018), um dos perfis de família que mais cresce é a ‘monoparental com filhos’, um grupo que em sua maior parte é formado por mães solo (mulheres com filhos). Ainda segundo o IBGE, dentre as 11 milhões de mães solo no Brasil, 61% delas são mulheres negras. Além disso, 63% das casas que têm como pessoa de referência mulheres negras, com filhos até 14 anos, estão abaixo da linha da pobreza.

Como é calculado o déficit habitacional

A categorização que compreende os formatos de moradias precárias e permitem o cálculo do déficit habitacional no país bem como a subdivisão entre Homens e Mulheres por tipo de moradia, são definidas como:

Habitação Precária, que é composto por:

  • Domicílios rústicos, que são imóveis sem paredes de alvenaria ou madeira adequada para esse fim, resultando em estados de moradias insalubres. 
  • Domicílios improvisados, onde moradias são fixadas em unidades não-residenciais, como lojas, fábricas, etc. ou com dependências não destinadas à moradia, mas que na data de referência estava ocupado por morador (ex: prédios em construção, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, etc.)

Coabitação familiar que ocorre quando duas ou mais famílias convivem em um mesmo imóvel e que não dispõem de liberdade ou privacidade. 

E ônus excessivo com aluguel, que considera moradores de áreas urbanas com renda familiar de até três salários mínimos.


O número integral do déficit habitacional é alcançado por indicadores coletados a partir das avaliações acima. Confira estes dados na tabela abaixo:

Outro dado alarmante: violência x moradia

A Fundação João Pinheiro também apontou como importante, outra parte do estudo que tem relação com a Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, um quarto das mulheres sofre violência doméstica. Em torno de 80% das vezes as agressões são praticadas por parceiro íntimo, atual ou passado, e por parentes como pais, irmãos, filhos, tios e sogros. Conforme Dossiê da Agência Patrícia Galvão, infelizmente os atos de violência são rotina na vida das mulheres. O estudo mostra que 43% dizem sofrer violência diariamente e 35% semanalmente.

Há vários motivos que levam essas mulheres a se manterem em relações abusivas. Um deles, é a dificuldade de manutenção da posse da moradia em caso de dissolução do casamento. Na maioria dos casos, as mulheres não possuem seus próprios bens e não possuem também os recursos necessários para adquiri-los. Outra vezes, acabam entrando em ciclos de despejos constantes dos lugares em que buscam se abrigar após a separação, e por fim, a falta de um teto as faz voltar para junto do agressor. 

Dentre outros fatores somados, muitas mulheres se mantêm em relacionamentos abusivos por não terem acesso a moradias seguras. Esta realidade ainda é ignorada ou invisibilizada em muitas análises oficiais sobre a demanda de moradia no Brasil.  

Mas a luta segue e persegue avanços!

A relação entre gênero e o acesso à moradia já começou a ser pautada em algumas ações independentes e também nas políticas públicas. Um exemplo disso é a luta capitaneada pela Casa de Referência da Mulher Tina Martins, em Belo Horizonte. O espaço, que é a primeira ocupação feminista de mulheres da América Latina, acolhe vítimas de violência doméstica e outras vulnerabilidades, oferecendo abrigo, segurança, encaminhamentos e fortalecimento. Em parceria com o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), que encabeça a luta pelo acesso à moradia em vários estados brasileiros, consegue direcionar as mulheres acolhidas como participantes prioritárias no processo interno de organização do movimento para a conquista da casa. É uma ação integrada que conecta gênero e moradia de forma intencional e consciente das questões que circundam os temas, conforme discutido anteriormente.

No dia 08/03/2011, Dia Internacional da Mulher, a presidenta Dilma Rousseff divulgou mudança nas regras do então Programa Minha Casa, Minha Vida, para garantir que o imóvel ficasse com a mulher no caso de separação. O programa Minha Casa, Minha Vida foi substituído pelo Programa Casa Verde e Amarela que seguiu os critérios anteriores. Em 2019, o Senado aprovou o Projeto de Lei 4.692, que concede prioridade às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar nos programas sociais de acesso à moradia financiados por recursos públicos, mas ainda está pendente de sanção presidencial. E há também a Lei 14.118, assinada em  12 de janeiro de 2021, que determina que tanto o contrato quanto o registro do imóvel sejam feitos, preferencialmente, em nome da mulher. A regra prevalecerá para famílias com renda mensal de até três salários mínimos, as quais tenham adquirido o bem pelo programa. No caso de divórcio, a propriedade do imóvel comprado ou regularizado pelo programa durante o casamento ou união estável ficará com a mulher, independentemente do regime de bens (comunhão parcial ou total ou separação total de bens). O homem só terá direito ao registro do imóvel no caso de ter a guarda total dos filhos. 

No Distrito Federal, a lei nº 6.192 de 2018 (que complementa a lei nº 3877 de 2006 que dispõe sobre a política habitacional do Distrito Federal) prevê, dentre outros, a priorização de atendimento a famílias com mulheres responsáveis pela unidade familiar e vítimas de violência doméstica. Em Belo Horizonte, tramita o projeto de lei nº 642/18 que pretende garantir prioridade de atendimento em programas habitacionais para mulheres que sofrem violência doméstica e denunciam os agressores.

Também houve mudança no Rio de Janeiro, onde o projeto de lei nº 272/2021 estabelece que os Programas Habitacionais para famílias de baixa renda tenham como prioridade a mulher vítima de violência doméstica. Em Minas Gerais, a lei 24.099 de 2022 prioriza recursos e programas para chefes de famílias e mulheres vítimas de violência doméstica. Nela, foram incluídas também a concessão de auxílio emergencial para transferência domiciliar e o auxílio em caso de calamidade decorrente de desastre natural.

A violência contra as mulheres é uma infeliz realidade brasileira retratada nestes exemplos de legislações, políticas e ações autônomas que buscam mitigá-la a partir do viés da moradia. Sabemos que são necessárias diversas e constantes ações frente a violência de gênero, especialmente se consideramos o machismo estrutural, a sociedade patriarcal e a cultura do estupro. Nesse contexto, acreditamos que a segurança da moradia tem o potencial de, em muitos casos, ajudar a romper ciclos de violência. Fortalecemos também o entendimento de que a mulher precisa ser priorizada nas ações e políticas de acesso à moradia, tendo em vista que estão majoritariamente à frente das famílias e dos cuidados com as crianças.

Uma resposta

  1. Estou fazendo um trabalho da faculdade sobre, mulheres solo na habitação… Uma realidade pra muitas mulheres que lutam por sua sobrevivência e familiar, e nóis mulheres negras sabemos o quanto é difícil seguir em frente.

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